Sorvetes de flocos com raspas de chocolate

Na madrugada, uma luz azulada ilumina a sala de Nathan. Seu ronco desordenado e recorrente apneia angustiariam qualquer uma que dormisse a seu lado. Infelizmente (ou felizmente, para elas) nenhuma o faz há alguns anos.

A organização do seu habitat assegura que o status quo será mantido por mais algum tempo. Pouparei você dos detalhes inconvenientes, como o óleo de fritura que, há mais de dois anos, acumula fungos no forno. Enfim, o apartamento onde Nathan reside é desagradável o suficiente para fazer vomitarem a Barata de Kafka e a Mosca de Cronenberg.

Entre uma leve parada em seu ciclo respiratório e o retorno ao fluxo normal de roncadas, a tampa de uma panela é movida e cai da pia. A luz azulada se transforma em um par de seios sendo manuseados por um homem vestido de bombeiro. Ainda sonolento, Nathan observa a tampa no chão e, sob ela, algo se move.

Ele se levanta e sente o chão frio e úmido. Com a mão esquerda, tira a tampa do chão. Com a direita, tateia a pia em busca de qualquer objeto capaz de estraçalhar aquele ser vivo. Em um movimento brusco, o espremedor de batatas acerta e esmaga uma barata. Quer dizer, era uma barata até o momento em que se constituía como unidade. Agora, é apenas uma mistura de pedacinhos marrons e uma pasta branca, quase como um sorvete de flocos com raspas de chocolate.

Nathan coloca a tampa e o espremedor sobre a pia, pega mais algumas folhas de papel toalha e retorna à frente da tevê para continuar o que faz todas as noites. E todos os dias também.

No dia seguinte, a barata não existe mais. As últimas formigas descolavam, do espremedor, os vestígios remanescentes da carapaça do inseto.

O reverberar de um som estridente desperta Nathan. Ele rola e engatinha até o telefone.

Ao atender, apenas um chiado estranho, como se dedos abafassem o transmissor do aparelho. O homem solta dois ou três “alô!” preguiçosos antes de bater o telefone sobre o gancho.

São onze da manhã. Isso seria um problema há alguns anos, quando o salário de Nathan não poderia arcar com o pacote de canais privê. Entretanto, com a dádiva do home office, nosso protagonista alcançou o sucesso pleno entre os jovens autores de trilogias distópicas. Tem os boletos pagos, pizza, cerveja e a possibilidade de ignorar seus fãs no Twitter.

O controle zapeia entre os canais favoritos. As opções são muitas, de pornochanchadas a intervenções com animais. Nathan assistiria à segunda opção às gargalhadas não fosse o pequeno inseto em cena. Um bichinho marrom, cuja anatomia ele conhece bem. Seis patas se movem, uma a uma, pelo pênis extremamente grande de um homem. Usando a glande como plataforma, a barata alça voo em direção à tela, quase como se tentasse sair da tevê de sessenta polegadas.

Um creme branco cobre a cena, à exceção do pequeno animal, que se aproxima.

Nathan, em um reflexo, fecha os olhos. Está no banheiro quando os abre. Ele tira a remela com os dedos. Sua mente alterna entre visões das próximas sessões de autógrafos à qual não comparecerá, o caldo branco e a barata que voava em sua direção. A água corrente molha a escova que, em uma ou duas escovadas, remove resíduos de cebola e calabresa dos dentes. O cuspe amarelado escorre pela pia. Catarro e saliva se fundem e descem pelo encanamento. Para despertar, dá dois tapinhas no próprio rosto. Pelo reflexo do espelho, consegue ver uma toalha pendurada na porta, dois azulejos trincados e um par de anteninhas se movendo por detrás da toalha.

Nathan fecha os olhos e esfrega as pálpebras com força. Ele sai. Prefere não conferir se há qualquer animal sinantrópico em seu banheiro. Cambaleando, chuta a mesa de centro e derruba alguns exemplares autografados da última aventura do Guerreiro Púrpura (spoiler: o guerreiro morre no final). Um passo e… CREC! Mais um passo… CROC!

O chão está coberto por uma colônia de carapaças, patas e antenas que se movem e sobem pelas pernas de Nathan.

Apenas uma alternativa lhe resta. Em passadas largas, ele corre para a pia, pega o espremedor de batatas e ataca! O objeto transforma-se em um martelo e explode os insetos. O líquido branco se espalha pelo apartamento como sangue. As cascas dos animais entopem as frestas das portas e o ralo do banheiro. Os restos mortais se acumulam enquanto Nathan esmaga… e esmaga…

O líquido sobe. A batalha continua. Os seres cobrem paredes, móveis, a tevê de sessenta polegadas…

Uma última barata voa ao redor de sua cabeça. Nathan, na ponta dos pés, se equilibra para não ser coberto pelo mesmo líquido que ajudara a formar. Em um golpe final, o espremedor atinge o ser voador. Nathan está exausto. O inseto cai no mar branco, que cobre nosso guerreiro.

No dia seguinte, Nathan não existe mais. As últimas formigas descolavam, da parede, os vestígios remanescentes do escritor.

2 comentários em “Sorvetes de flocos com raspas de chocolate

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  1. O que falar desse conto? Bom, eu já tinha te falado antes e repito. Se isso fosse uma pintura, seria, com certeza, uma obra surrealista! Hehehehe! Me lembra também os exageros de Tim Burton, só que um pouco mais exagerado!! Fantástico e grotesco! Uma metáfora sobre um grande problema: o conformismo. Pelo menos foi o que pareceu pra mim. Bem bacana, parabéns.

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