Escrita em sangue

Eu estou trajado com roupas antiquadas, num quarto precariamente mobiliado. A julgar pelo todo, me parece que estou em algum ponto do século XIX. Meu nome? Agamenon. Como me sinto? Desesperado! Meu pai está moribundo. Minha família tem ele como principal sustento. O que estou fazendo? Estou ajoelhado ao chão, mãos erguidas até a altura do queixo. Na minha frente, no chão, está desenhado um círculo com um pentagrama dentro, com uma vela acesa em cada ponta. Uma galinha morta está posicionada no centro da imagem, além de um pote com o sangue do animal, que foi usado para desenhar a figura. Estou sibilando um cântico rápida e intensamente, enquanto, na minha mente, grito por ajuda.

Apesar do quarto todo fechado, as chamas das velas são perturbadas por uma brisa forte. Meu coração se acelera, pois sei que isso é um sinal, sei que devo intensificar minha oração. O vento não cessa, pelo contrário, aumenta, assim como a iluminação no quarto. As chamas estão mais fortes. Um redemoinho está se formando no centro do pentagrama, sugando a fumaça sobrenaturalmente abundante do fogo das velas. O acúmulo da fumaça está tomando forma. Uma criatura horrenda se materializa. De pele vermelha, rosto ossudo, vestido num sobretudo comprido que lhe cobre quase todo corpo, deixando apenas à mostra as patas de casco fendido. No alto da testa ergue-se um par de chifres pontiagudos contorcidos em forma de espiral. Os olhos são de réptil e as pálpebras piscam de baixo para cima. Ele está calado, com um sorriso sinistro, encarando-me, como que se deliciando com meu nítido pavor.

Ele chama-me pelo nome com uma voz humana, porém rouca, profunda. Parece que o som paira no ar, até que lentamente extingue-se por completo. Ele sabe do meu pai, sabe por que o evoquei. Diz que pode me ajudar, mas preciso merecer. Me pergunta se estou disposto a provar meu mérito. Pergunto qual é o custo. Ele diz que a morte é como um animal faminto e meu pai seu alimento. Para que a morte o deixe, é necessário oferece-la algo digno de troca — algo não, alguém. Pergunto o que devo fazer. O demônio tira do bolso um punhal. Diz que será meu instrumento. Basta que eu o carregue. No momento certo, ele me dirá quem estará apto a saciar a morte no lugar do meu pai e me dará o vigor necessário para que me torne algoz, ofertante de sangue pela misericórdia de sangue. Penso em meu pai, em sua hombridade, em sua integridade. Digo que não farei. Seria por demais abominável manchar a retidão de sua vida com tão nefasto ato. O demônio fita-me com seus olhos reptilianos como que olhando direto em minha alma. Então percebo. Então fica claro toda a verdade. Sou um dissimulado ludibriando a mim mesmo com impressões erradas de minhas intensões. Assim, seguro o punhal. Sinto de imediato a sensação de invencibilidade. Então aceito.

A criatura afasta-se com ar de satisfação e anuncia que voltará. O vento sopra, as chamas brilham e o demônio começa a perder a forma, mas não antes de perceber que alguém assistia. Não Agamenon, mas eu, Lázaro, que ali estive todo o tempo. E sorri para mim.

(…)

Dr. Otávio despertou Lázaro do transe com urgência. Seu paciente estava relatando um desconcertante episódio de regressão e, por fim, gritava exasperadamente. Acordou com o olhar afetado, um estado febril. O doutor tentava acalmar seu paciente. Aos poucos, Lázaro foi centrando-se, retomando o controle. Dr. Otávio parecia perplexo, apesar de tentar esconder qualquer reação. Receitou um remédio para Lázaro acalmar-se e pediu que retornasse. Lázaro deixou o consultório com a certeza de nunca mais querer aquilo novamente.

O que será que houve? — perguntava-se. Foi ao médico para mergulhar a fundo em seu comportamento extremamente misantropo. Lázaro era extremamente inteligente. Estudava tudo que podia sobre a alma humana. Filosofia, sociologia, escritores que pareciam ler as pessoas. Observava a todos, do indivíduo ao grupo; dos relacionamentos ao vivo aos virtuais. E então escrevia. Arquitetava mundos, situações. Seus personagens gritavam em sua mente. Dar escape a sua imaginação era o que o mantinha vivo e são. Mas pelo seu jeito de ser, não mantinha qualquer ligação com outros. Por isso, ninguém pagava pelas suas ideias; ninguém se interessava pelas suas palavras. E por mais que acreditasse em seu modo de ser, sabia que o ser humano não foi feito para viver só. E então procurou ajuda. Encontrou o Dr. Otávio Vásquez que lhe prometeu respostas imediatas. Ao que parece, não foi naquela noite ou em qualquer outra que teria solução para suas questões.

Chegou em casa ainda atormentado. Via os olhos do demônio toda vez que fechava os seus. Tinha receio da escuridão e do silêncio. Quando já era tarde e resolveu deitar-se, sentia o sono pesando, mas não se imaginava dormindo. Deitou com a luz do quarto apagada, mas manteve a do corredor acesa. Não conseguia adormecer. Não conseguia evitar as cenas de sua regressão.  E de repente, o pânico o acometeu. Podia sentir algo próximo. Um vento morno soprou forte e cessou. Lázaro não estava mais sozinho. Lentamente olhou para direção da porta e lá viu, parado, com o mesmo sorriso, dentes pontiagudos à mostra, assim como seus longos chifres. Não havia forças para mexer-se. O demônio começou a falar. Relatou que o tinha visto enquanto Lázaro visitava seu outro avatar. E durante esse vislumbre, o demônio percebeu que Lázaro também precisava de ajuda. E que o contato com sua alma abriu um canal de forma que ele o pudesse visitá-lo sem ser convidado.

Então, o demônio perguntou do que Lázaro precisava, mas este mantinha-se petrificado. O demônio começou a andar, os sons dos cascos como na regressão, diminuindo cada vez mais a distância, até estar ao seu lado. Abaixou-se até estarem cara a cara e, como com Agamenon, inspirou fundo, regozijando-se com o odor de terror. Prosseguiu afirmando para Lázaro não ter medo. E, uma vez mais, arguiu o que Lázaro desejava, agora com os olhos reptilianos fixos nos de Lázaro.

Então, na profundidade crócea daquele olhar, Lázaro contemplou toda sua mesquinhez, todo seu egoísmo. Viu que não desejava relacionar-se com ninguém. Queria que o lessem, que reconhecessem seu gênio.

O demônio estendeu o braço. Oferecia a Lázaro um objeto. Era uma caneta de ouro, com a ponta bem fina. Disse que com ela, Lázaro teria o que almejava. Bastava carregá-la consigo e ela apontaria o caminho. E assim Lázaro aceitou.

Quando a segurou, o escritor sentiu que nada o impediria. Nenhum obstáculo, nenhuma moral. Desta forma, o demônio afastou-se prometendo retornar. E o vento soprou. E o ser diabólico desvaneceu.

(…)

Dias após o sinistro episódio, Lázaro já quase se esquecia do ocorrido, mas ainda carregava a caneta. Estudava na biblioteca municipal quando viu uma moça. Era nova, morena com cabelos lisos nos ombros, carregando uma pilha de livros. Um ímpeto indescritível nasceu no coração de Lázaro. Como nunca antes na vida, queria contato com um ser humano. Em instantes estava ao lado da jovem mulher, oferecendo-lhe ajuda, que foi prontamente aceita. Numa rápida passada de olho após colocar os livros na mesa, Lázaro reparou os assuntos. Adiantou-se em citar uma frase de um dos autores. A garota animou-se. Era o início de uma conversa que duraria toda a tarde. A moça apresentou-se. Seu nome era Fernanda. Cursava filosofia e, como Lázaro, adorava estudar na biblioteca. Lázaro auxiliou Fernanda, discorrendo sobre os diversos objetos de estudo da menina, que se mostrava impressionada pelo homem mais velho, porém tão culto. Só deixaram a biblioteca por já estar fechando. Deste dia em diante, passaram a se ver com frequência.

Seus encontros eram repletos de diversos temas. Para Lázaro, eram completos. A suavidade da voz de Fernanda, suas feições, contrastando com o esplendor de sua inteligência, era aquilo que ele procurava, a resposta aos seus problemas. Não precisava mais saber sobre a origem do que era. Fernanda despertava o potencial do que ele poderia ser.

Fernanda também estava extasiada com aquele misterioso homem. Seu acanho e aparente comportamento arredio, era apenas um charme ao unir-se com o tanto de conhecimento e profundidade. Quando Lázaro lhe mostrou seus textos, Fernanda teve certeza. Ela mesmo tomou a iniciativa. Ela mesmo roubou-lhe o primeiro beijo.

Seus dias juntos passaram a ser rotina. Lázaro agora tinha mais prazer em cozinhar, seu segundo hobby. Com isso, convidou Fernanda para jantar em sua casa. Purê de batatas que Lázaro preparava usando creme de leite, feijão, arroz e bife acebolado, o prato predileto de Fernanda. Uma das coisas que Lázaro amava em sua namorada era o prazer na simplicidade. Fernanda era vida — algo que Lázaro nunca tinha experimentado.

Após o jantar, Fernanda esperava Lázaro sair do banheiro para assistirem um filme. O homem lavava as mãos quando uma sensação avassaladora lhe abateu, um desejo insustentável lhe impelia a agir. Como num transe, caminhou até o quarto, pegou a caneta e foi ao encontro da mulher. Parou na porta da sala a observar. Sorrindo, ela pedia-o para vir logo. Lázaro continuava parado, com olhar macabro. A intuição de Fernanda começou a disparar — algo estava errado. Ela chamou pelo namorado. Ele começou a mover-se em sua direção calmamente, encarando-a. Lázaro, você tá me assustando — disse. Foi então que Lázaro lançou-se para ela. Uma mão segurando-a pelo pescoço, a outra erguida com a caneta pronta para estocá-la. A moça conseguiu segurar o braço de Lázaro e impedi-lo de descer com o instrumento direto em seu tórax, mas Lázaro a sufocava e era mais forte. Porém, com uma joelhada entre as pernas de Lázaro, Fernanda desvencilhou-se e correu para cozinha. Lá pegou uma faca. Lázaro chegou logo em seguida. Fernanda chorava e perguntava por quê. Lázaro apenas se aproximava. Fernanda estava pronta para se defender, quando seu namorado parou, hesitante. Então uma lufada de vento soprou forte e começou a tomar forma atrás de Lázaro. A figura que apareceu gelou todo o sangue de Fernanda. A presença da criatura revigorou o ímpeto em Lázaro, que estapeou a namorada, levando-a ao chão. Logo Lázaro sentava em cima de seu peito enquanto Fernanda se debatia freneticamente.

A criatura horrenda começou a falar. Disse que era somente com o sangue de Fernanda que Lázaro mostraria seu valor. Que somente o sangue dela era o necessário para ele escrever a grande obra que o deixaria eterno. Lázaro estava cego. Já conseguia sentir a glória do sucesso. A criatura aproximou-se perto de seu ouvido e ordenou: faça!

Lázaro ergueu o braço pronto para disferir o golpe, enquanto Fernanda lutava enlouquecidamente, derrubando tudo que estava na pia. A medida que os utensílios foram caindo, talheres, pratos, todo aquele barulho e agitação fazia Lázaro cada vez mais acordar de seu torpor.

Ao seu lado, o demônio insistiu: FAÇA! E Lázaro fez. Num rápido movimento, fincou a caneta no pescoço do demônio. O monstro levantou cambaleante, tentando remover o objeto. Em seu rosto, a feição do desespero. A criatura caiu de joelhos e, então, Lázaro e Fernanda puderam assistir o monstro definhar. Seu corpo foi secando, seus olhos sendo sugados para dentro e, por fim, apenas uma carcaça ressecada permaneceu, dissipando-se aos poucos em seguida, até apenas restar a caneta jogada no chão.

(…)

Era noite de gala, uma premiação importante para a literatura. Lázaro dirigia-se ao palco, após ser anunciado como grande vencedor do Prêmio Escriba por seu livro Contos do Demônio dos Desejos. Recebeu as congratulações e em um curto discurso agradeceu ao grande amor de sua vida, sua esposa, Fernanda.

Ao descer do palco, pode observar orgulhosamente seu prêmio, um troféu um tanto esquisito, que lembrava um espremedor de batatas. Apenas sorriu aliviado, lembrando-se daquela terrível noite, quando quase pôs tudo a perder. E então, foi terminar a celebração com Fernanda, agora grávida do primeiro filho.

2 comentários em “Escrita em sangue

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  1. Muito bom o texto José Maurício!!! Principalmente a primeira parte, dai em diante eu tentaria dar uma condensada no texto pra manter o bom ritmo da primeira parte. Por exemplo no segundo paragrafo da segunda parte “Lázaro era extremamente inteligente”, diminuiria bem esas informações sobre o personagem e os paragrafos seguintes cortando algumas informações do texto que não são primordiais para a história, mas diminuem o ritmo intenso que a história começou, que repito muito bom!!!
    Quando se aproxima do fim pensei, poxa tá meio obvio o que vai acontecer, mas vc deu um fim diferente pra história, gostei disso e novamente a cena final, igual ao começo do texto é muito boa e intensa. Óbvio que tudo isso é apenas opinião minha heheheh mas como leitor senti isso começa muito bom, tem uma guinada na história que ainda sim continua boa e intrigante mas depois cai um pouco a intensidade dos acontecimentos. É aquela coisa da teoria do conto, ele vence por nocaute o leitor e o começo do seu texto se continuasse no mesmo ritmo seria um vale-tudo rssss.

    A cena final do conto me fez lembrar do filme Advogado do Diabo, pensei que teria outra reviravolta ali, tipo acabou tudo bem pro persnagem…só que não rssss

    Parabéns, muito bem escrito e os movimentos dos personagens muito bem enquadrados facilita a visualização de tudo e entramos na história mesmo…

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  2. Concordo com o comentário anterior. O início possui detalhes tão vivos que faz com que a leitura fique empolgante não deixando que a gente largue o conto, imaginando o que vai acontecer a seguir. Achei, que apesar de ter poucas falas, elas podiam estar melhor separadas para que a fluidez ficasse mais fácil, na minha opinião claro.

    O ritmo, no meio da história, não se perdeu, eu acho que a história poderia até ser mais trabalhada. Se ela fosse maior, talvez, o final que ficou um pouco previsível poderia ter chocado mais, pois mesmo que a gente imaginasse o que iria acontecer, estaríamos mais envolvidos com personagens e entraríamos naquele estado de negação – não aceitando que o personagem morresse.

    O final onde o protagonista recebe seu prêmio, fechou a história com chave de ouro, pois foi cruel e, ao mesmo tempo, percebemos o porque dele ter feito tudo o que fez – quase pareceu justificável sua ação.

    Parabéns!

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